sexta-feira, 4 de março de 2011

CELEBRAR E REZAR COM OS MÁRTIRES


A CELEBRAÇÃO MARTIRIAL

“Não conteis a ninguém o que acabastes de ver, até que o
Filho do Homem ressuscite dos mortos”. (Mt 17,1-9)

A falange de cristãos que deram a Vida em nome de Deus é incontável. O “Martyrologium Romanum” não dá conta de enumerar todos os que puseram a sua Vida à disposição da morte. Mesmo contraditória essa afirmação, mulheres e homens, em todos os tempos, derramaram-se – como copo cheio que transborda – em vida sobre a Terra, fecundando-a com seu sangue.
O dia 12 de fevereiro de 2005 não foi diferente de outros dias. Mais uma cristã morreu, como tantos outros naquele dia. Desta vez, não a fome, não uma doença, não o desprezo, não a violência, não o descaso público, não a maldade - que corrompe o coração humano - levaram uma mulher a tombar como as árvores em meio às quais ela habitava.
O fato: A Irmã Dorothy Stang foi assassinada. Com seis tiros, um na cabeça e cinco ao redor do corpo, aos 73 anos de idade, no dia 12 de fevereiro de 2005, às sete horas e trinta minutos da manhã, em uma estrada de terra de difícil acesso, a 53 quilômetros da sede do município de Anapu, no Estado do Pará, Brasil.
A celebração do sexto ano de sua morte me exime de refletir sobre os elementos, culpados e circunstâncias de sua Páscoa. Creio ser oportuno relembrar não a morte, mas o que pode estar por entre as vielas de sua vida. Como não a conheci pessoalmente, como nunca pesquisei sobre sua vida, penso ser esta escrita uma reflexão simplória.
“Sair de sua terra” encontra na tradição bíblica uma forte consideração para a missionariedade que marcou os passos de Dorothy. Abraão, o predecessor de todo caminhante, parece ter inspirado, com seu exemplo, o marchar peregrino da missionária sobre a terra. A sua chegada ao Brasil transpõe o horizonte dessa escrita para o caminho, para a caminhada – aos mais devotos pode ser sim à Jerusalém Celeste. Tomo então dois epítetos para referir-me à Dorothy: Missionária e Peregrina – quem é enviado e quem se põe a caminho, respectivamente.
Seu peregrinar remete a uma relação anterior, que em se tratando de uma religiosa é essencial: O encontro. Qual há de ter sido esse encontro? O que a inspirou?
A inspiração à morte não preenche o espírito da Peregrina. Mesmo que sua vida tenha terminado tragicamente, com traços de martírio, a morte em si mesma não me parece definir seu agir, sua peregrinação. O peregrino busca vida! O lugar comum do cotidiano pode não inspirar alguns para uma peregrinação. É a experiância de abrir os olhos, de ver o invisível que desfaz o lugar comum e transmuta-o em novidade. Uma novidade que sempre foi presente, mas que nunca desafiou. Só quem é desafiado, rechaçado de seu conforto local pode buscar uma nova maneira de ser confortado. A peregrinação assim é busca de conforto. É também fuga. Fuga do incômodo, da dor, do desconforto. E, assim sendo, o desconforto lança os pés na estrada, que geralmente é incerta. A incerteza do caminho é só confortável porque liberta a alma para sair do desconforto em que está imersa.
Perceber o novo no cotidiano comum só é possível a partir de um encontro que é inefável, pois acontece no recôndito do ser, em um lugar ao qual o acesso com a palavra, com a escrita ou qualquer outra forma de comunicação será sempre por analogia. Esse encontro envia, faz também “sair de sua terra” e leva o ser à procura de… Diferente do peregrino, o missionário é enviado. Ele vai em nome de outro, não em seu próprio e não em busca de si. Ele, pondo o pé no caminho, faz de sua vida também incerteza. Essa incerteza, porém, não lhe cumula de nenhum conforto, ela é pura espera, esperança, o que a torna mais desafiadora.
Dorothy, Vida-morte, conforto-desconforto, peregrinação-missionariedade. Essas idéias distantes e distintas vão alongando o texto e sempre abrindo horizonte a um novo parágrafo.
A vida da Missionária-Peregrina é essa abertura a uma nova possibilidade, pois enquanto se mantém no caminho tudo é novo. Nada, portanto, é previsível. Ao caminhar, sempre novos encontros serão efetuados – reflexo e espelho daquele fundamental e inefável – e sempre novos desafios serão apresentados. O estar a caminho incita a todo instante um novo olhar, um novo encontro, uma nova busca.
Se seu sangue fecundou a terra, se sua morte convenceu a alguém, se seu martírio deve ser cultuado, não sei! A certeza que se me apresenta agora é a da necessidade do desconforto-envio, sinal da única e múltipla presença Inefável. Aquela mesma presença que sobre o monte encheu de medo a Pedro, Tiago e João e que os desconfortou-enviou a testemunhar com a vida, não com a palavra.

Tárcio Santos, SJ

Nenhum comentário: