Diante de uma surpreendente noite de estrelas, do espanto provocado por uma cidade vista desde o alto de uma montanha. Diante do silêncio que nasce de um rosto atravessado pela dor, da ternura que o bebé acende no olhar deslumbrado dos seus pais, já todos nos sentimos ultrapassados e pequenos.Esses breves instantes rompem a monotonia do nosso modo de ver o mundo. Experimentamos a novidade como se abríssemos os olhos pela primeira vez.A pequenez de que tomamos consciência e a abertura a que nos sentimos convidados ajudam a revelar uma verdade escondida. Somos seres dependentes. Recebemos a vida e o mundo. Não nos inventamos a nós mesmos.A modernidade ajudou-nos a valorizar a liberdade e a autonomia e com isso teve um papel decisivo na defesa da dignidade do ser humano e dos seus direitos. Mas, uma boa parte da filosofia parece ter esquecido que a dependência não é apenas uma experiência própria da infância, da velhice ou dos momentos de doença em que a nossa debilidade é mais visível. A dependência é um dos traços mais profundos e bonitos do ser humano.Sozinhos somos átomos perdidos, não vamos a lado nenhum.Cada segundo da nossa existência está marcado por essa dependência. Dependemos de quem faz chegar a água a nossa casa, de quem prepara o pão durante a noite, daqueles que perderam horas de sono a montar um sistema capaz de regular o trânsito. Mas as coisas mais evidentes, são aquelas de que mais facilmente nos esquecemos. Talvez por isso nos custe tanto aceitar que dependemos de outros.Ao retomar o ritmo dos estudos ou do trabalho, depois de um tempo de férias é normal que tracemos planos e objectivos. É normal definir metas mais ou menos ambiciosas. Talvez pudéssemos inverter um pouco a lógica desses planos, pensando menos naquilo que vamos fazer individualmente para alcançar esses objectivos e mais nas ajudas que vamos receber de outros. Tomando consciência como nesses sonhos passados ao papel, há tanto que não depende de nós. Podemos mesmo perder uns minutos, soletrando interiormente as ajudas que vamos pedir. Podemos olhar à nossa volta e reconhecer todos os laços que nos unem, toda a imensa rede de dependências em que estamos inseridos. Por muito livres que queiramos ser, não podemos romper com essa rede de dependências sem que isso signifique desistir daquilo que somos.A autonomia a que aspiramos não é uma carapaça que nos distingue e afasta dos outros. Somos únicos e irrepetíveis. Mas a nossa originalidade não está desligada das nossas relações. Dependemos dessas relações para ser quem somos. Abrindo os nossos sentidos ao mundo e aos outros, reconhecendo a nossa pequenez e vulnerabilidade, talvez possamos saborear a vida em todos os seus contrastes como um enorme presente.Retocando uma imagem muito bonita de Mia Couto, talvez possamos descobrir que é o olhar do filho que dá à luz o amor da mãe.
Zé Maria Brito
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