Há duas semanas comecei a aprender pintura chinesa, aumentando assim a lista das coisas que jamais pensei poder realizar. Mas a tradição da pintura chinesa é fascinante, difícil de resistir à sua atração. Baseada numa técnica aparentemente simples, o resultado é surpreendente, de uma riqueza incrível de detalhes. Uma das coisas que mais me intriga, porém, é o despojamento. Pinta-se mais com os vazios do que com os cheios, mais com o que é deixado do que com o que é posto. No fundo, é uma arte das escolhas, como na vida.Os instrumentos da pintura clássica chinesa são o pincel feito a partir de pelos de animais diversos, a tinta nanquim e água. Os contornos são definidos com traços ágeis, com mais ou menos humidade, mais ou menos tinta. O papel contribui com sua espessura e com o tipo de fibra do qual é feito. A destreza do artista revela-se não tanto pela qualidade do desenho, mas pelo “sabor” que ele confere às suas imagens através dos tons de cinza e preto que a água e o nanquim produzem. Aos poucos aparecem nuvens, pedras, riachos, animais, flores... e o papel vai virando paisagem. E um dos critérios da boa pintura é o equilíbrio de espaços cheios e vazios, que permitem simultaneamente um percurso para o olhar e o destaque das formas.Na arte da vida, os instrumentos das escolhas que vão definindo os contornos de nossa história geralmente são os afetos e valores, as relações e as circunstâncias sobre as quais o jogo de nossas encruzilhadas acontece. E a qualidade de uma vida boa, assim como a pintura chinesa, é apreciada não tanto pela aparência, mas pela sabedoria, criatividade e maturidade que brotam como frutos das decisões que cada um de nós vai realizando ao longo do tempo. Uma vida “saborosa” é uma vida na qual uma paisagem equilibrada (simples ou complexa) pode ser apreciada – um equilíbrio que frequentemente exige mais ousadia que meio-termo, note-se. E, outra vez como na pintura, os vazios que aceitamos não preencher são tão ou mais importantes quanto as cores que lançamos sobre nosso horizonte.E tudo é uma questão de escuta, na verdade. Pintar ou decidir, olhar ou caminhar, toda arte é uma forma de corte, de ruptura que exige uma escuta profunda da própria vida, da alma humana, do horizonte das pessoas que partilham conosco o tempo e o espaço, além de uma escuta atenta das Alturas. Quem cultiva essa atitude reverente diante da criação acaba descobrindo uma outra forma de ver. Para escutar, porém, é preciso não temer o silêncio, outra forma eloqüente de vazio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário