O homem é mais que pó?
Publicamos o comentário do padre Raniero Cantalamessa, OFM
No livro do Gênesis, lê-se que depois do pecado, Deus disse ao homem: «Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar» (Gn. 3, 19). Todos os anos, na Quarta-feira de Cinzas, a liturgia repete esta severa advertência: «Recorda-te que és pó e ao pó voltarás». Se dependesse de mim, tiraria imediatamente esta fórmula da liturgia. Justamente agora, a Igreja permite substituí-la por outra: «Convertei e crede no Evangelho». Tomada ao pé da letra, sem as devidas explicações, aquelas palavras são a expressão perfeita do ateísmo científico moderno: o homem não é mais que um amontoado de átomos que se dissolverá, ao final, em outro amontoado de átomos.
O Qohélet (Eclesiastes, N do T.), um livro da Bíblia escrito em uma época de crise das certezas religiosas em Israel, parece confirmar esta interpretação atéia quando escreve: «Todos caminham para um mesmo lugar, todos saem do pó e para o pó voltam. Quem sabe se o sopro de vida dos filhos dos homens se eleva para o alto, e o sopro de vida dos brutos desce para a terra?» (Qo 3, 20-21). No final do livro, esta última terrível dúvida (quem sabe se há diferença entre a sorte final do homem e a do animal) parece resolvida de modo positivo, porque o autor diz: «antes que a poeira retorne à terra para se tornar o que era; e antes que o sopro de vida retorne a Deus que o deu» (Qo 12, 7). Nos últimos escritos do Antigo Testamento, começa, é verdade, a abrir caminho a idéia de uma recompensa dos justos depois da morte, e até a de uma ressurreição dos corpos, mas é uma crença ainda bastante vaga no conteúdo e não compartilhada por todos, por exemplo, pelos saduceus.
Neste contexto, podemos avaliar a novidade das palavras com que começa o Evangelho do domingo: «Não se perturbe o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Não fora assim, e eu vos teria dito; pois vou preparar-vos um lugar. Depois de ir e vos preparar um lugar, voltarei e tomar-vos-ei comigo, para que, onde eu estou, também vós estejais». Contêm a resposta cristã à mais inquietante das perguntas humanas. Morrer não é – como estava nos inícios da Bíblia e no mundo pagão – baixar ao Xeol ou ao Hades para levar ali uma vida de larvas ou de sombras; não é – como para certos biólogos ateus – restituir à natureza o próprio material orgânico para um posterior uso por parte de outros seres vivos; tampouco é – como em certas formas de religiosidade atuais que se inspiram em doutrinas orientais (com freqüência mal entendidas) – dissolver-se como pessoa no grande mar da consciência universal, no Todo ou, segundo os casos, no Nada... É, em contrapartida, ir estar com Cristo no seio do Pai, ser onde Ele é.
O véu do mistério não se ergueu porque não pode suprimir-se. Assim como não pode descrever o que é a cor um cego de nascimento, ou o som um surdo, tampouco se pode explicar o que é a vida fora do tempo e do espaço quem ainda está no tempo e no espaço. Não é Deus quem quis manter-nos na obscuridade... Nos disse, no entanto, o essencial: a vida eterna será uma comunhão plena, alma e corpo, com Cristo ressuscitado, compartilhar sua glória e sua alegria.
O Papa Bento XVI, em sua recente encíclica sobre a esperança (Spe salvi), reflete sobre a natureza da vida eterna desde um ponto de vista também existencial. Começa observando que há pessoas que não desejam em absoluto uma vida eterna, que inclusive têm medo. Para que serve – perguntam-se – prolongar uma existência que se revela cheia de problemas e de sofrimentos?
A razão deste temor, explica o Papa, é que não se consegue pensar na vida mais que nos modos que conhecemos aqui embaixo; enquanto que se trata, sim, de vida, mas sem todas as limitações que experimentamos no presente. A vida eterna – diz na encíclica – será submergir-se no oceano do amor infinito, no qual o tempo – o antes e o depois – já não existe. Não será um contínuo suceder-se de dias do calendário, mas como o momento pleno de satisfação, no qual a totalidade nos abraça e nós abraçamos a totalidade.
Com estas palavras, o Papa alude talvez, tacitamente, à obra de um famoso compatriota seu. O ideal do Fausto, de Goethe, é de fato precisamente alcançar a plenitude de vida e tal satisfação que o faça exclamar: «Detêm-te, instante, és tão belo!». Creio que esta é a idéia menos inadequada que podemos ter da vida eterna: um instante que desejaríamos que não acabasse nunca e que – diferentemente de todos os instantes de felicidade daqui de baixo – não terminasse jamais! Vêm-me à memória as palavras de um dos cantos mais amados pelos cristãos de língua inglesa: «Amazing grace». Diz: «E quando ali tenhamos estado há dez mil anos, / brilhando como o sol, / o tempo que nos fica para louvar a Deus / não será inferior que quando tudo começou» (When we've been there ten thousand years, / Bright shining as the sun, / We've no less days to sing God's praise / Than when we've first begun.)
Traduzido por Zenit
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