terça-feira, 25 de novembro de 2008

Darfur: gritos de DOR



Missionário português lembra drama no Darfur
A cada instante correm notícias de dor que se repetem em muitos lugares desta região do Oeste sudanês, ao ponto de transformar o Darfur numa mancha cada vez mais suja no mapa do globo terrestre. Às acções criminosas e mortíferas da responsabilidade do governo sudanês, une-se o mundo árabe e uma boa parte do continente africano, e também a China e outros países. Personalidades influentes no norte do mundo falam cautelosas e com voz titubeante, enquanto os seus interesses políticos neutralizam e anulam o direito à justiça, à paz e à vida deste povo. No entanto, os gritos sofredores não param de se ouvir. Chegam, imediatos e directos, de todas as direcções. Vêm de Abujabra e Mujlad, zonas de petróleo ainda por explorar e já em disputa. Vêm dos lados do Egipto, atravessando o deserto líbio. Vêm da estepe e savana em Gineina, na fronteira com o Chade. Vêm das florestas de Redom, já a penetrar no sul do país. Uma extensão quase cinco vezes e meia maior que Portugal:
Porquê os Janjauids?
Porquê toda esta situação de medo, violência e incerteza? Porquê a violação de tantas mulheres e mesmo de menores? E as mortes-genocídio? E os campos de refugiados dentro e fora do país? Porquê a anarquia e caos?
O presidente sudanês, El Bachir, apertado pela iminente convocação a responder por esses crimes perante o tribunal internacional de Haia, continua a enganar os habitantes de Darfur com promessas de reconstrução das áreas destruídas e desenvolvimento da região, a todos os níveis. Mas a paz continua a ser objectivo ausente nos seus planos.
Brincar à guerra
No Sudão fala-se de paz a todo o instante. É na escola, na mesquita e na igreja. É em casa, na rua e em conversas de ocasião. Até a saudação na língua oficial do país (assalam aleikum) põe a paz como primeiro desejo para a pessoa que encontramos. Porém, é uma palavra que, não poucas vezes, ouço com certa renitência.
Como se pode dar à paz o seu valor absoluto e sagrado quando se vêem os garotos na rua a brincar à guerra com espingardas do tamanho da kalashnikof dos soldados com quem eles convivem diariamente?
Em Kalma, não longe de uma das entradas deste que é o maior acampamento do Darfur, um homem fixa, o olhar perdido e ausente, o horizonte sujo, adivinhando a tempestade de areia que se aproxima.
- “Assalam aleikum”!
- “Seja assalam, a paz, ao menos para ti, estrangeiro”.
- “Habitava nas redondezas de Bulbul. Atacaram e incendiaram a aldeia. A minha mulher, como tantas outras, foi levada pelos Janjauids. Eu e os meus três filhos, com outros – alguns deles feridos graves – fomos evacuados da aldeia. Depois de quatro meses aqui em Kalma e as queimaduras no meu corpo já curadas, pensava agora na possibilidade de um trabalho. Já tinha começado a trabalhar na camina – uma fábrica improvisada e rudimentar de tijolos – aqui mesmo a quatro quilómetros. Mas, desde há duas semanas, quando aconteceu o grande ataque a este acampamento, ninguém pôde sair. O meu próprio filho foi uma das setenta pessoas que morreram nessa grande batalha. Diz-me lá, estrangeiro, que fazer? Para onde fugir e construir vida?”
Kalma, o maior campo de refugiados internos no Darfur, abriga cerca de cem mil pessoas que, como Al Taher, foram violentamente desprovidas de habitação, haveres e, em muitos casos, também de alguns queridos familiares. Desde as primeiras razias, em Março de 2003, são mais de 2 milhões e meio os irmãos de infortúnio de Al Taher, sobreviventes nos campos espalhados por toda a zona. Mas, na sua infelicidade, conheceram uma palavra nova que não mais irão esquecer. Pronunciam-na com gratidão: munazzama, organização humanitária (ONG).
Louvores e reparos
No Darfur há sinais de humanidade, visíveis no desejo e compromisso em restabelecer a justiça e a paz, usurpada pelas mãos sanguinárias dos Janjauids. Há gestos heróicos a querer restituir ao ser humano a humanidade que é de seu direito.
É de louvar o esforço dos soldados da paz (UNAMID), apesar da promessa não cumprida: os 9000 homens no terreno são um terço do plano e promessa original da ONU. Outra falta que não podemos calar: os capacetes azuis não têm o mandato de desarmamento, que é a base do caminho para a justiça e a paz. Então assiste-se ao desfilar dos mortos, dos desalojados, das mães e filhas violentadas na sua intimidade feminina.
Às agências e forças da ONU, associam-se as organizações humanitárias (ONG) com os seus mais variados serviços como a saúde, a alimentação, higiene, formando um conjunto de cores, raças e credos diferentes de quase 25 mil pessoas.
Mas não estão sós. Liderados pelos dois nomes conhecidos por todos aqui na zona – Khalil e Abduluahed – encontram-se as forças “rebeldes”, hoje divididos em quase duas dezenas de subgrupos. Embora com boas intenções de fazer restituir a justiça e a paz ao seu povo darfuriano não deixam, por vezes, de copiar os erros dos inimigos Janjauids, colaborando na cumplicidade da morte de mais de 300 mil darfurianos.
A corrupção pratica-se à luz do dia, descarada e naturalmente, em remotas aldeias como em plena cidade. Janjauids e rebeldes e ainda os anónimos de uma anarquia caótica, assaltam, de arma em punho, os veículos das ONG. Estas, constrangidas a guardar os seus veículos na garagem, deslocam-se em meios de transporte público cuja eficiência, para os serviços requeridos, deixa muitíssimo a desejar. Outras vezes, viajam em automóveis locais, de forma a não atrair o olho furtivo dos assaltantes. Não obstante tudo, não há estratégia que lhes garanta a segurança nas zonas do interior. Há poucos dias tocou ao keniano Eugene, um dos motoristas da Cruz Vermelha, numa missão-safari a Jebal Marra. “Senti o gatilho atrás da cabeça a querer disparar; se quis viver, tive que ceder-lhes as chaves do carro” – conta o jovem condutor, ainda não completamente restabelecido do choque.
Das trincheiras à paz?
Desde a proclamação da sua independência, em 1956, o Sudão não se tem libertado das suas guerras internas. Muita gente acreditou que Al Bachir, ao tomar posse do governo, em 1989, através de um golpe militar relativamente pacífico, seria o homem de luta pela paz e bem-estar duradoiros para o Sudão. Conversando com os jornalistas, afirmou: “Eu venho das trincheiras e a minha cor é esta da farda que trago vestida, verde”.
Até hoje, Al Bachir não demonstrou vontade de aplanar o terreno para que a paz fosse possível. Ao contrário, escavou mais trincheiras e não abdicou da cor verde no seu verdadeiro sentido: a máxima autoridade na guerra.
A violência gera violência e a guerra não oferece a paz ao mundo. O povo do Darfur sofre violência e morte, mas não perde a esperança. Do fundo da trincheira, a cor verde militar será repisada e esmagada, numa luta (interior) que é a verdadeira Jihad, aquela abençoada por Deus. Acreditamos na conversão das cores e, muito mais ainda, dos corações. Até que o verde beligerante dará lugar à esperança que, por sua vez, trará à luz a realidade da pomba branca da paz, que voará até ao Darfur.

Feliz da Costa Martins, Nyala

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