quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

DA COR DAS CINZAS (Coluna Peregrina)

Hoje o dia amanheceu chuvoso e frio, da cor das cinzas. E sobre essa cor vim rezando, pensando no sentido dessa quarta-feira, o primeiro de quarenta dias durante os quais atravessaremos o deserto até o dia da Ressurreição. Vim conversando com essa cor. Minha primeira pergunta: cinza é cor de fim ou de começo? O nome “cinza” vem dos vestígios da madeira queimada e, assim sendo, é nome de uma cor que vem no fim, depois que a fogueira brilhou e alegrou a festa. É cor de fim de carnaval, quando quase toda a energia de nosso corpo foi empregada na folia. É cor de inverno, de momentos sóbrios, de gente séria. Muitos dos sentimentos que eu associo a essa cor são tristes ou melancólicos, graves. Por outro lado, a essa cor eu associo outra memória, vinda da mitologia fenícia, egípcia e grega: a Fênix. Segundo a mitologia, a Fênix é um pássaro cor de fogo que, ao completar seu ciclo de vida, constrói um ninho com folhas de canela que ela depois incendeia. Depois, de suas próprias cinzas, ela renasce. A beleza dessa imagem atraiu a atenção dos primeiros artistas cristãos, que a empregaram para comunicar o mistério do Cristo Ressuscitado. E assim como na mitologia chinesa a Fênix é a rainha das aves, a tradição cristã reconhece em Jesus o Rei, aquele que marcha à frente de seu povo, abrindo o caminho da nova vida. Cinza, portanto, também pode ser começo.Com essa cor, eu penso também em muitos amigos cuja experiência de fé parece estar adormecida, escondida nas cinzas. Jamais apagada, porém, por mais que se o diga, pois há algo em nossa estrutura que nos abre à experiência do que nos supera e redime. Agora que o dia vai terminando, eu sinto uma vontade imensa de soprar nessas cinzas do coração e ver a vermelhidão fazer ninho, abrir espaço para as penas cor-de-ouro de uma nova experiência. Cada um de nós conhece suas mortes. Cada um de nós carrega vestígios cor-de-cinza recolhidos ao longo do caminho, mas a arte da vida não consiste em aprender a morrer. Bem ao contrário, o desafio é a prender a cultivar o fogo da vida. Sem medo.

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