sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

“VER AS PESSOAS…”

S. Inácio nos convida, nos Exercícios Espirituais, a “ver as pessoas” (EE 106), a “olhar o que fazem” (EE 108), deixando-nos impressionar por elas e depois “refletir para tirar algum proveito de cada coisa” (EE 108). A Congregação que está por terminar produzirá alguns textos, sem dúvida importantes, mas será recordada sobretudo pelas pessoas que ocuparam nela um lugar central.
Em primeiro lugar, o P. Peter-Hans Kolvenbach: afastou-se da presidência da Congregação Geral logo que foi aceita sua renúncia, participou como todos no processo de “mumurationes” para a eleição do novo General e, eleito este, passou a ocupar seu lugar na sala como todos. É a primeira vez na história da Companhia que um General renunciante continua acompanhando os trabalhos da Congregação. E o P. Kolvenbach o tem feito no seu estilo: discreto, atento, respeitoso, com humor. Sem ares de “ex” ou de “emeritus”, fugiu quanto pôde dos aplausos e do reconhecimento. Ainda assim, a Congregação e o Papa lhe manifestaram sua gratidão por ter guiado a Companhia “de modo iluminado, sábio e prudente…em um momento nada fácil da história da Ordem” (Bento XVI, 10-01-08). Completado o serviço que se lhe pediu, encontra-se esperando destinação quando voltar a sua província de origem, o Próximo Oriente. Nos tempos livres se dedica a recuperar o árabe.
Outro rosto importante é, sem dúvida, o do P. Adolfo Nicolás. Em 19 de janeiro foi eleito como o 29º sucessor do Inácio do Loyola na direção da Companhia do Jesus. A consolação produzida por sua eleição se confirma dia a dia, à medida em que o vemos desempenhar-se com naturalidade, intervir com respeito e lucidez, tomar suas primeiras decisões na orientação do novo governo. As interpretações enviesadas de alguma imprensa (a “carta oculta dos jesuítas”, o “representante da ala progressista”, etc.) evaporam-se à medida que se afirma a qualidade humana e espiritual que o tem feito valer para este serviço, para além dos limites da saúde ou da idade.
Sua primeira carta dirigida como Geral aos companheiros dispersos pelo mundo é amostra de sua simplicidade e trato franco e cordial. Diz-nos: “É a primeira vez que lhes escrevo desde minha eleição, há pouco mais de um mês. Podem facilmente imaginar a surpresa, mais ainda, o susto, que recebi nesse momento, já que me considerava inelegível por minha idade e por minhas muitas carências e limitações, bem conhecidas por aqueles com os quais convivi e trabalhei. Possivelmente o mais difícil de explicar é a experiência que vivemos na Congregação Geral, nesses dias em que esquadrinhávamos a vontade de Deus, procurando o bem da Igreja e da Companhia. Foi essa busca, intensa, sincera e aberta, a que me impediu de declinar ou recusar a eleição. Não se pode dizer ‘não’ a pessoas que estiveram procurando tão sinceramente a vontade de Deus. Agora lhes prometo que dedicarei toda minha energia e minha pessoa ao trabalho de ajudar à Companhia a seguir adiante, apoiando o bem, respondendo aos novos desafios, animando a confrontar a difícil tarefa de ser testemunhas coerentes e acreditáveis do Evangelho do Jesus Cristo em que acreditam”.
Em suas palavras ao Papa, em 21 de fevereiro passado, o P. Geral expressa alguns aspectos de sua própria sensibilidade espiritual. O retrato do Inácio e a carta de identidade de todo jesuíta -diz- revela-se na frase do final dos Exercícios: “em tudo amar e servir”. O jesuíta é o homem dos Exercícios, dado que estes “antes que ser um instrumento inapreciável de apostolado, são para o jesuíta a medida de sua própria maturidade espiritual”.
Para o novo General “o que nos inspira e nos impele é o Evangelho e o Espírito de Cristo: sem a centralidade do Senhor Jesus em nossa vida, nossas atividades apostólicas não teriam razão de ser. Do Senhor Jesus aprendemos a estar perto dos pobres, dos que sofrem e dos excluídos deste mundo”. O nosso modo é -havia-nos isso dito este missionário em sua primeira homilia como Geral- estar na fronteira, indo às “nações” com uma proposta de Evangelho, de boa notícia.
O jesuíta é também o homem das Constituições, que nos formam como homens de Igreja para uma missão difícil, capazes de reconhecer nossos enganos sem nos desanimar porque “nada disto apaga nossa paixão não só por servir à Igreja, mas também, com maior radicalidade ainda, conforme ao espírito e à tradição inaciana, amar a Igreja hierárquica e ao Santo Padre, Vigário de Cristo”.
É precisamente o Santo Padre, Bento XVI, outra das pessoas que marcarão esta Congregação. Comunicou-se com ela em duas ocasiões: em 10 de janeiro através de uma carta e, faz uns dias, em 21 de fevereiro, em um discurso breve durante a audiência que concedeu à Congregação. Realmente, não era esta a primeira amostra de valorização: quis estar presente na comemoração do Ano Jubilar, em São Pedro; visitou a Universidade Gregoriana e dirigiu umas palavras espontâneas e cheias de afeto aos jesuítas da comunidade; manteve durante estes anos de seu pontificado uma relação fluída e permanente com o P. Kolvenbach. Foi claro ao manifestar seu apreço pela Companhia e, além dela, teve também gestos de simpatia pela vida consagrada. Foi igualmente claro em nos desafiar a crescer em fidelidade à Igreja e ao magistério.
O encontro com o Santo Padre no dia 21 ficará para a história. Mencionou em seu discurso pessoas muito caras à Companhia: Mateo Ricci, Roberto do Nobili, e “as `reducciones´ da América Latina” como “experiências extraordinárias” de anúncio do Evangelho. Referiu-se a Paulo VI e suas palavras à CG 32. E, sobretudo, recordou ao P. Arrupe em uma de “suas últimas e proféticas intuições”: a criação do serviço jesuíta aos refugiados, “os mais pobres dos pobres”.
Bento XVI nos confirmou na missão: “animo-os a prosseguir e renovar sua missão entre os pobres”, citando sua afirmação em Aparecida (maio 2007): “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós para nos enriquecer com sua pobreza (2 Cor 8,9)”. Impulsionou-nos a dar especial atenção ao ministério dos Exercícios –ele acabava de concluir os seus- e, a partir de uma fé sólida, estar presente “na tarefa da confrontação e do diálogo com os diversos contextos sociais e culturais e as diferentes mentalidades”.
Uma missão que, de acordo a nossa melhor tradição, deve realizar-se em sintonia com o Magistério e em obediência ao sucessor do Pedro. Bento XVI nos pediu isso com insistência sendo consciente de “que se trata de um ponto particularmente sensível e árduo” para nós. Entretanto, conclui, uma particular “devoção efetiva e afetiva” com o Vigário de Cristo fará de nós seus colaboradores “tão valiosos como insubstituíveis em seu serviço à Igreja universal”. Quer-nos próximos a ele, nos convidando a “refletir para recuperar o sentido mais pleno desse quarto voto característico de sua obediência ao sucessor do Pedro”. A bola ficou, pois, em nossa quadra de esportes.
Finalmente, o rosto da Congregação: uma “pessoa” coletiva de várias cores, procedências e pareceres, que foi processando durante estas semanas uma experiência de “união de ânimos” com frutos concretos: um novo Geral, seu Conselho, vários documentos que refletem o modo como a Companhia percebe hoje sua identidade e missão. Tudo isso realizado em uma busca sincera da vontade de Deus, expressa em consciência, livremente, longe de todo partidarismo. Se Adolfo Nicolás não pôde dizer “não” a pessoas que procuravam sinceramente a vontade de Deus, este mesmo Deus tampouco disse “não” a quem esteve procurando discernir sua vontade; melhor ainda, nos está sendo propício em Roma, entre outras modos, através da graça da “união de mentes e corações”.
Muitas pessoas estiveram também presentes durante estas semanas, às vezes de modo anônimo. Os que nos ajudaram em tarefas domésticas, de secretaria ou de enfermaria -muito solicitada, seja dito de passagem-, os que oraram por nós todo este tempo, os religiosos e sacerdotes que nos apreciam, as leigas e leigos que sentiram esta Congregação como própria. Muito obrigado a todos! Inácio nos pede “em tudo amar e servir”: esperamos devolver em serviço tanto amor recebido.

Ernesto Cavassa, S.J.

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