Vida da gente é cheia de imprevistos. Às vezes são acontecimentos, às vezes pensamentos, imagens, idéias que nos surpreendem. Dessa vez foi um filme, ou o trecho de um documentário enviado por Bito, amigo jornalista. Não me recordo de haver visto algo tão duro, tão triste e revoltante como ver Mei Ming morrer de fome, de abandono, de tristeza. Toda a vida do mundo está ferida de morte. Mas é exatamente ao lado dessa criança que é preciso anunciar o mistério e a presença do Deus da Vida.Mei, em mandarim, significa bonita. A beleza de seu rosto, no entanto, esconde-se por detrás de uma montanha de sofrimento. Essa menina, explica-nos o documentário, fora por duas vezes abandonada e, no último destino ao qual chegou, foi condenada ao “quarto da morte” por seus algozes. Permaneceu dez dias sem nenhuma assistência, até sua morte diante das câmeras. Segundo esse documentário, que suponho datar dos anos oitenta, Mei é apenas uma das muitas crianças, sobretudo meninas, vitimadas pela política do filho único. Incentivados por essa política de controle populacional, associada à tradição milenar que supervaloriza os filhos varões em detrimento das mulheres, inúmeros pais assassinam ou abandonam seus filhos. De acordo com os autores desse documentário, alguns orfanatos mantidos pelo Estado, ao menos aqueles visitados pela equipe, as crianças são vítimas de inúmeras formas de crueldade, desde passarem o dia atadas a uma cadeira, até morrerem abandonadas como Mei. É difícil averiguar a extensão do problema. É mais difícil ainda saber qual a realidade atual do comportamento diante das crianças do sexo feminino, uma atitude que tende a mudar senão por outra coisa apenas pelo fato de que as conseqüências da desproporção entre homens e mulheres faz-se sentir gravemente. Mas nada disso apaga os gemidos de agonia que Mei continua a lançar ainda hoje. Toda a criação geme com ela em seu leito de morte.Quando as Escrituras registram a história do bom samaritano, elas colocam na boca de Jesus um verbo para descrever o sentimento do samaritano diante do homem ferido. Com esse verbo, Jesus diz que o samaritano “sentiu remoerem-se as entranhas”, o que a maior parte das Bíblias traduzem como “teve compaixão”. É verdade, ter compaixão não é ter pena, é sentir o sofrimento do outro de alguma forma tocar suas próprias entranhas. Toda forma de justiça cristã nasce dessa experiência, que é mais que um sentimento. Associamo-nos à dor do outro, e isso nos move. Não é que não possamos, é que não conseguimos permanecer indiferentes. Junto com o Grupo OPA, o projeto da BrinquedOPA (http://brinquedopa.blogspot.com) que iniciamos em Jenipapo, no Marajó, depois em Vazantes (CE) e Natal (RN) nasce desse desejo: oferecer uma presença, antes de oferecer uma solução. De fato, nossa presença é o que temos de mais precioso para oferecer aos outros. Embora o rosto de Mei esteja associado a um evento preciso, a um lugar particular do globo terrestre, seu gemido tem a intensidade do grito de sofrimento de todas as crianças. Na Ásia, na África, no Brasil, em qualquer língua ou cultura, nós, cristãos, somos chamados a estar ao lado, a sermos acessíveis, a sermos irmãos de quem sofre. Sobretudo os pobres. Sobretudo as crianças.Eis uma missão urgente para nós, cristãos, e para todas as pessoas de coração justo: promover uma cultura na qual cada indivíduo é considerado pessoa, tem um nome, uma história jamais reduzidas a um número. Daí nascerá nosso combate às situações de injustiça, sobretudo de violência política, nas quais pessoas são reduzidas a um montante e a dignidade humana é ferida. O rosto de Mei é o rosto de Cristo. Quem tem olhos para ver, veja. Seu gemido é expresso numa língua que apenas os corações compassivos conhecem. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
quarta-feira, 30 de janeiro de 2008
LEMBRE-SE DO ROSTO DE MEI MINGA
Vida da gente é cheia de imprevistos. Às vezes são acontecimentos, às vezes pensamentos, imagens, idéias que nos surpreendem. Dessa vez foi um filme, ou o trecho de um documentário enviado por Bito, amigo jornalista. Não me recordo de haver visto algo tão duro, tão triste e revoltante como ver Mei Ming morrer de fome, de abandono, de tristeza. Toda a vida do mundo está ferida de morte. Mas é exatamente ao lado dessa criança que é preciso anunciar o mistério e a presença do Deus da Vida.Mei, em mandarim, significa bonita. A beleza de seu rosto, no entanto, esconde-se por detrás de uma montanha de sofrimento. Essa menina, explica-nos o documentário, fora por duas vezes abandonada e, no último destino ao qual chegou, foi condenada ao “quarto da morte” por seus algozes. Permaneceu dez dias sem nenhuma assistência, até sua morte diante das câmeras. Segundo esse documentário, que suponho datar dos anos oitenta, Mei é apenas uma das muitas crianças, sobretudo meninas, vitimadas pela política do filho único. Incentivados por essa política de controle populacional, associada à tradição milenar que supervaloriza os filhos varões em detrimento das mulheres, inúmeros pais assassinam ou abandonam seus filhos. De acordo com os autores desse documentário, alguns orfanatos mantidos pelo Estado, ao menos aqueles visitados pela equipe, as crianças são vítimas de inúmeras formas de crueldade, desde passarem o dia atadas a uma cadeira, até morrerem abandonadas como Mei. É difícil averiguar a extensão do problema. É mais difícil ainda saber qual a realidade atual do comportamento diante das crianças do sexo feminino, uma atitude que tende a mudar senão por outra coisa apenas pelo fato de que as conseqüências da desproporção entre homens e mulheres faz-se sentir gravemente. Mas nada disso apaga os gemidos de agonia que Mei continua a lançar ainda hoje. Toda a criação geme com ela em seu leito de morte.Quando as Escrituras registram a história do bom samaritano, elas colocam na boca de Jesus um verbo para descrever o sentimento do samaritano diante do homem ferido. Com esse verbo, Jesus diz que o samaritano “sentiu remoerem-se as entranhas”, o que a maior parte das Bíblias traduzem como “teve compaixão”. É verdade, ter compaixão não é ter pena, é sentir o sofrimento do outro de alguma forma tocar suas próprias entranhas. Toda forma de justiça cristã nasce dessa experiência, que é mais que um sentimento. Associamo-nos à dor do outro, e isso nos move. Não é que não possamos, é que não conseguimos permanecer indiferentes. Junto com o Grupo OPA, o projeto da BrinquedOPA (http://brinquedopa.blogspot.com) que iniciamos em Jenipapo, no Marajó, depois em Vazantes (CE) e Natal (RN) nasce desse desejo: oferecer uma presença, antes de oferecer uma solução. De fato, nossa presença é o que temos de mais precioso para oferecer aos outros. Embora o rosto de Mei esteja associado a um evento preciso, a um lugar particular do globo terrestre, seu gemido tem a intensidade do grito de sofrimento de todas as crianças. Na Ásia, na África, no Brasil, em qualquer língua ou cultura, nós, cristãos, somos chamados a estar ao lado, a sermos acessíveis, a sermos irmãos de quem sofre. Sobretudo os pobres. Sobretudo as crianças.Eis uma missão urgente para nós, cristãos, e para todas as pessoas de coração justo: promover uma cultura na qual cada indivíduo é considerado pessoa, tem um nome, uma história jamais reduzidas a um número. Daí nascerá nosso combate às situações de injustiça, sobretudo de violência política, nas quais pessoas são reduzidas a um montante e a dignidade humana é ferida. O rosto de Mei é o rosto de Cristo. Quem tem olhos para ver, veja. Seu gemido é expresso numa língua que apenas os corações compassivos conhecem. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
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